quarta-feira, 23 de julho de 2025

A sorte de esquecer

    

Christiane Angelotti


No conto 'Funes, o memorioso'*, do escritor argentino Jorge Luis Borges, somos apresentados a um personagem que adquire uma condição extraordinária: ele lembra de tudo. Cada folha caída no pátio, cada tom de voz de cada pessoa, cada dobra de cada lençol que já viu. Essa memória perfeita, no entanto, se revela não como um dom, mas como uma prisão. Lembrar de tudo é não conseguir abstrair nada — é não poder criar. Funes, o protagonista, é incapaz de pensar, porque pensar é também generalizar. E generalizar exige esquecer detalhes.

Pensei nele esta semana, não por acaso. Porque eu também fui, por um tempo, uma espécie de Funes afetiva: lembrava de cada palavra, cada silêncio, cada microgesto. A lembrança excessiva me trouxe medo, julgamentos — e foi fechando, pouco a pouco, as portas do meu coração. Deixei de acreditar nas boas experiências que a vida poderia oferecer e, como consequência, perdi pessoas especiais. E, nesse processo, também me perdi de mim mesma. A memória virou um cativeiro, onde as emoções se repetiam sem espaço para a cura.

sexta-feira, 4 de julho de 2025

Sobre a arte de não se encontrar

 Christiane Angelotti

 

 Dedico ao meu leitor beta, Márcio.
A observação é a alma de quem escreve e registra.

 

 

São Paulo escurece devagar.

Luzes se acendem antes que a noite chegue por completo, como quem tenta afastar o medo do escuro com pressa.

Nas sacadas dos prédios, ninguém se olha. Mas as janelas acesas piscam feito vagalumes urbanos.

Cada uma guarda uma história.

Cada uma esconde uma ausência. Uma tristeza.

 

Eu caminho pela cidade como quem escreve um diário invisível. Na minha mente.

Penso em como vivemos tão próximos — e tão desconectados.

Temos rede, wi-fi, aplicativos, emojis..., mas quase nunca um encontro que dure mais que uma distração.