segunda-feira, 11 de agosto de 2025

Sobre a arte de cultivar afetos

 

 Christiane Angelotti

 

Tenho pensado muito sobre como alimentamos nossos afetos — e sobre quantas vezes deixamos de fazê-lo. Há uma ilusão perigosa em acreditar que os vínculos se sustentam sozinhos, como se bastasse a semente do encontro para garantir eternidade a qualquer laço. Mas até a semente mais promissora deixa de germinar se for esquecida em terra seca.

É importante ressaltar que falo dos afetos de verdade, dos amores, das pessoas que nos são importantes, com quem temos um vínculo genuíno, que fazem parte da nossa essência. Eu, por exemplo, tenho menos de dez amigos verdadeiros.

Nos últimos tempos vivi algumas pequenas mortes — daquelas que não ganham rituais nem lágrimas públicas, mas que pesam no coração como o silêncio de uma amizade que já foi viva. São ausências que não se explicam, respostas que não chegam, conversas que murcham. São pessoas que desaparecem mesmo estando online, e a gente aprende, na marra, a parar de insistir.

Em tempos de redes sociais, é fácil manter uma ilusão de presença. Um emoji aqui, um “curtir” acolá. Mas afetos verdadeiros pedem mais que interações esporádicas — pedem presença real, ainda que virtual. Pedem escuta, troca, disponibilidade. Pedem escolha.

Tenho visto e lido muito sobre essa necessidade compulsiva de estar conectado — o medo de ficar de fora, conhecido pela sigla FOMO (Fear Of Missing Out). Essa ansiedade nos faz querer adicionar gente, manter a timeline cheia, estar em vários lugares ao mesmo tempo, numa busca incessante por pertencimento. Mas essa sensação de conexão superficial pode nos fazer perder o foco do que realmente importa.

E é disso que se trata, no fundo: reciprocidade é escolha. Ninguém é obrigado a estar, mas também não se pode fingir presença. Eu tenho escolhido estar. Às vezes até demais. Envio mensagens, pergunto como a pessoa está, me importo. Quero encontrar, fazer coisas juntas, participar da vida e que participem da minha vida. Compartilhar. Porque amar é isso tudo também.

É fundamental entender que existem pessoas que são mais importantes que outras em nossas vidas — e isso é normal. Faz bem categorizar, reconhecer quem realmente importa para podermos destacar e alimentar esses vínculos. Porque imagine só: se eu der atenção a quem não é tão importante e negligenciar quem é essencial, trocarei afeto por distração.

Amizade não pode ser território de adivinhação. Amor, tampouco. Ninguém deveria implorar por atenção, por conversa, por cuidado. A ausência de reciprocidade corrói o afeto mais bonito, e aos poucos vamos desistindo de esperar. Não como vingança, mas como forma de sobrevivência.

Tenho aprendido a cultivar o que também me cultiva. A não colocar água onde não há raiz. A reconhecer os gestos mínimos que sustentam a ponte entre dois mundos. E a aceitar, com alguma serenidade, que nem todo mundo vai atravessar a vida comigo até o fim.

 

Referências para reflexão

·  Zygmunt Bauman — Modernidade Líquida (Editora ‎ Zahar)

Bauman discute como, na sociedade contemporânea, as relações humanas tornaram-se mais frágeis e transitórias, como se fossem líquidas, exigindo constante renegociação e atenção para que se mantenham.

· Byung-Chul Han — A Sociedade do Cansaço (Editora Vozes)

O autor aborda a pressão e o esgotamento na vida moderna, causada pelo excesso de estímulos, expectativas e a necessidade constante de desempenho, o que impacta diretamente nossa capacidade de estabelecer vínculos profundos.

· FOMO (Fear Of Missing Out)

Termo da psicologia contemporânea que descreve a ansiedade relacionada ao medo de perder eventos, experiências ou conexões importantes, levando a uma hiperatividade social e virtual que pode prejudicar a qualidade das relações.



3 comentários:

  1. Adorei.
    Vivemos mesmo numa época de diluição: todos parecem presentes, mas estão distantes. É a falsa impressão que as redes passam. Na verdade elas estão aí para captar uma transparência distorcida do que realmente é o afeto real (Han sabe melhor do que eu). E não sei você, mas me sinto cada vez mais distante dos afetos reais. Fazer amigos se tornou algo automático, frio, corriqueiro. Quem de fato está conosco, vibrando pela vida? A palavra certa para o que sinto é "vazio". Quem sabe encontramos alguém disposto a trocar vida sem julgamentos?
    "Tenho aprendido a cultivar também o que me cultiva". Essa frase, essa ideia, é linda, poética. Uma bela crônica.

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  2. Li do Han o "Sociedade da Transparência" e é muito interessante como ele coloca essa conectividade baseada na nudez absoluta, aquela que retira o véu do mistério. Todos precisam ser transparentes para se mostrarem ao mundo, mas isso pornografiliza a interação social e nos joga dentro das obviedades e superficialidades. Estamos nos tornando superficiais para nos relacionar, pois ninguém deseja mergulhar no abismo do outro. E com isso a solidão aumenta, a fome por coisas urgentes consome a sociedade, e cada vez mais preferimos conversar com robôs e algoritmos.
    Eu queria apenas o humano, pois como disse Maiakovski: "em mim a anatomia ficou louca, sou todo coração".

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  3. Muito pertinente.
    Vivenciamos tempos onde o individualismo tomou conta do social. Não temos mais reuniões de amigos, muito em função das obrigações profissionais e vamos exercendo esse modo do não contato, fazendo com que nosso eu interior se tornem cada vez mais só... Triste ...

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