quarta-feira, 4 de junho de 2025

Anjos São Gente Que Fica um Pouco

 

Christiane Angelotti


Era mais um fim de tarde entre muitos, o metrô pulsando como um coração cansado, repleto de almas apressadas, cada uma encolhida em seu próprio universo, buscando uma saída — ou talvez um refúgio. 

Esperava o trem quando, em meio à multidão, avistei uma jovem sentada no chão, chorando. Mas não era um choro qualquer. Ela ofegava. Tremia o corpo inteiro. Como se cada lágrima carregasse o peso de um mundo em ruínas.

Aquela cena me atravessou como uma flecha. Ninguém parava. Ninguém olhava. Era como se ela fosse invisível, um fantasma entre os vivos. Mas eu não consegui ignorar. 

Me aproximei devagar. Perguntei se ela estava tendo uma crise de ansiedade e se queria ajuda. Ela me olhou com olhos marejados, perdidos em um abismo, e balançou a cabeça afirmando que sim. Sentei-me ao seu lado, segurei sua mão. Pedi que focasse na respiração — o ar entrando e saindo pelas narinas. Lembrei das aulas de yoga e fui guiando, com a suavidade que consegui reunir naquele momento. 

Aos poucos, ela foi se acalmando. Disse que se chamava Lívia. 

Perguntei se queria que eu ligasse para alguém, se queria ajuda médica. Ela não quis. E então começou a me contar o motivo de seu choro. Como um filme que se revela em cenas, as palavras vieram aos poucos, entre pausas e soluços. Estava voltando do hospital. Recebera um diagnóstico. Não soube dizer o nome, talvez nem tivesse decorado. Mas a sentença era cruel: ela perderia a visão. Talvez em meses. Talvez menos. 

“Tenho só alguns meses para ver tudo que quero ver na vida”, ela disse. A voz encolhida, como se cada palavra fosse um sussurro de despedida. “E depois... nunca mais.” 

Chorou de novo. E eu ali, segurando suas mãos, sentindo um nó na garganta, pensando no que gostaria de ouvir se fosse comigo. 

Foi então que compartilhei o que acredito, instintivamente: 

“Você vai parar de ver, sim. Mas enxergar, não. A gente não enxerga só com os olhos. Percebemos o mundo com outros sentidos... talvez até com algo que nem saibamos nomear. Quem sabe, Lívia, você venha a enxergar melhor do que qualquer pessoa que conhece. Vai notar coisas que eu, com toda a minha visão, não percebo. Afinal, nem todo mundo que vê, enxerga. 

Ela me olhou de novo. E havia calma em seu olhar. Como se, por um instante, a tempestade tivesse cessado. 

“Você foi um anjo hoje”, ela disse. E eu chorei um pouco também. Porque aliviar o sofrimento de alguém é um presente e eu confesso que sou muito emotiva. 

Falei meu nome. Ela disse que eu tinha nome de anjo. Sorri. Anotei seu número. Nos despedimos. 

Ela seguiu para a linha azul. Eu, para a verde. A vida nos empurrou, cada uma para o seu lado. 

Mas eu fiquei com a certeza de que o “sim” que disse naquela plataforma — ao sair do meu caminho para acolher uma desconhecida — foi o gesto mais bonito do meu dia. Talvez do meu ano. 

Infelizmente, devo ter anotado o número errado. Não consegui encontrá-la depois. Espero que, se lembrar do meu nome, me procure. Mas é tão difícil... meu nome tem a letra “H” 

Às vezes, a gente não pode mudar o destino de alguém. Mas pode atravessar o desespero com ele, nem que seja por uma estação. 

E, assim, entre o caos do metrô e a fragilidade da vida, duas almas se tocaram. Mesmo que por um breve momento. E isso — isso fez toda a diferença. 

Um comentário:

  1. Adorei a sua crônica. Gosto do gênero. Quando você diz: " ... Mas pode atravessar o desespero com ele..", achei de uma beleza humanitária, uma síntese do amor em que tanto acredito e sinto; porque é isso que realmente importa nas nossas relações, mesmo que seja "por uma estação"... Não acredito que possamos mudar o destino de alguém, mas isso podemos fazer, sempre que pudermos! Obgdo

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