segunda-feira, 11 de agosto de 2025

Sobre a arte de cultivar afetos

 

 Christiane Angelotti

 

Tenho pensado muito sobre como alimentamos nossos afetos — e sobre quantas vezes deixamos de fazê-lo. Há uma ilusão perigosa em acreditar que os vínculos se sustentam sozinhos, como se bastasse a semente do encontro para garantir eternidade a qualquer laço. Mas até a semente mais promissora deixa de germinar se for esquecida em terra seca.

É importante ressaltar que falo dos afetos de verdade, dos amores, das pessoas que nos são importantes, com quem temos um vínculo genuíno, que fazem parte da nossa essência. Eu, por exemplo, tenho menos de dez amigos verdadeiros.

quarta-feira, 23 de julho de 2025

A sorte de esquecer

    

Christiane Angelotti


No conto 'Funes, o memorioso'*, do escritor argentino Jorge Luis Borges, somos apresentados a um personagem que adquire uma condição extraordinária: ele lembra de tudo. Cada folha caída no pátio, cada tom de voz de cada pessoa, cada dobra de cada lençol que já viu. Essa memória perfeita, no entanto, se revela não como um dom, mas como uma prisão. Lembrar de tudo é não conseguir abstrair nada — é não poder criar. Funes, o protagonista, é incapaz de pensar, porque pensar é também generalizar. E generalizar exige esquecer detalhes.

Pensei nele esta semana, não por acaso. Porque eu também fui, por um tempo, uma espécie de Funes afetiva: lembrava de cada palavra, cada silêncio, cada microgesto. A lembrança excessiva me trouxe medo, julgamentos — e foi fechando, pouco a pouco, as portas do meu coração. Deixei de acreditar nas boas experiências que a vida poderia oferecer e, como consequência, perdi pessoas especiais. E, nesse processo, também me perdi de mim mesma. A memória virou um cativeiro, onde as emoções se repetiam sem espaço para a cura.

sexta-feira, 4 de julho de 2025

Sobre a arte de não se encontrar

 Christiane Angelotti

 

 Dedico ao meu leitor beta, Márcio.
A observação é a alma de quem escreve e registra.

 

 

São Paulo escurece devagar.

Luzes se acendem antes que a noite chegue por completo, como quem tenta afastar o medo do escuro com pressa.

Nas sacadas dos prédios, ninguém se olha. Mas as janelas acesas piscam feito vagalumes urbanos.

Cada uma guarda uma história.

Cada uma esconde uma ausência. Uma tristeza.

 

Eu caminho pela cidade como quem escreve um diário invisível. Na minha mente.

Penso em como vivemos tão próximos — e tão desconectados.

Temos rede, wi-fi, aplicativos, emojis..., mas quase nunca um encontro que dure mais que uma distração.

domingo, 22 de junho de 2025

O clique que custa caro

  

Christiane Angelotti   

 

Outro dia, percebi que fazia semanas que eu não usava o Google. Não porque tivesse deixado de existir, mas porque, diante de uma dúvida, uma ideia, uma curiosidade ou até uma angústia, eu recorria direto à IA. Rápida, certeira, paciente – quase humana. Quase mágica. 
Mas aí me perguntei: e o que está por trás dessa mágica? 

quarta-feira, 4 de junho de 2025

Anjos São Gente Que Fica um Pouco

 

Christiane Angelotti


Era mais um fim de tarde entre muitos, o metrô pulsando como um coração cansado, repleto de almas apressadas, cada uma encolhida em seu próprio universo, buscando uma saída — ou talvez um refúgio. 

Esperava o trem quando, em meio à multidão, avistei uma jovem sentada no chão, chorando. Mas não era um choro qualquer. Ela ofegava. Tremia o corpo inteiro. Como se cada lágrima carregasse o peso de um mundo em ruínas.

Aquela cena me atravessou como uma flecha. Ninguém parava. Ninguém olhava. Era como se ela fosse invisível, um fantasma entre os vivos. Mas eu não consegui ignorar. 

terça-feira, 27 de maio de 2025

Um Último Pôr do Sol

 Christiane Angelotti 


“Este é o primeiro pôr do sol em muito tempo.” 

 

 As palavras de Fatima Hassouna ecoam em minha mente enquanto olho pela janela. O céu se despede em tons de laranja e lilás, e percebo como cada fim de tarde carrega um significado único. Para mim, é um dos momentos mais encantadores do dia. Para outros, pode ser a primeira visão do céu em paz. Para alguns, talvez a última. Há quem veja o pôr do sol como um alívio depois de dias de escuridão — por causa da dor, da prisão, da doença, da guerra. Há quem nem o note. Mas há também aqueles que o observam como uma despedida. Como foi o caso de Fatima. 

sábado, 10 de maio de 2025

Redes, ruídos e silêncios

 Christiane Angelotti  



Recentemente, percebi que estar nas redes sociais não tem me feito tão bem quanto antes. Resolvi escrever sobre isso para refletir — e convidar você a refletir comigo. 

Em um mundo onde as redes sociais se tornaram vitrines de nossas vidas, somos constantemente bombardeados por imagens e histórias que, à primeira vista, parecem nos conectar. No entanto, ao mergulharmos nesse universo digital, nos deparamos com um paradoxo: quanto mais nos expomos, mais distantes nos sentimos. As interações que deveriam nos aproximar muitas vezes se transformam em diálogos rasos, onde o "curtir" substitui o "como você está?". E essa distância do outro também revela a distância que vamos nutrindo de nós mesmos, da nossa essência. 

segunda-feira, 21 de abril de 2025

A Felicidade Já Mora Aqui


Christiane Angelotti


"Felicidade se acha é em horinhas de descuido." Essa frase, que parece ter saído do coração de Guimarães Rosa no conto “Barra da Vaca", poderia ter sido escrita por todo aquele que já sentiu o tempo parar por um instante bom demais para ser planejado. 

Tenho passado por dias mais introspectivos e pensado muito sobre a felicidade. Não como quem persegue uma promessa distante, mas como quem recolhe conchas na beira do mar: uma a uma, olhando de perto, escolhendo pelas cores e formatos, não pelo tamanho. Percebo, cada vez mais, que ela aparece quando estou distraída, desarmada, inteira. 

domingo, 6 de abril de 2025

O Amor, o Farol e o Zênite

 Christiane Angelotti 

 

    Há dores que o corpo não consegue traduzir. Sabemos que é o cérebro quem orquestra as emoções, que sente, calcula e tenta entender. Mas há momentos em que o coração pesa, como se uma fisgada profunda nos lembrasse que o amor tem uma geografia própria, um território que a Ciência ainda não mapeou.  

Faz três anos que o Rodrigo partiu. Três anos de ausência física, mas sua presença nunca se apagou. Em muitos dias, sinto a força do que vivemos — um amor intenso, verdadeiro, que desafiou o tempo, as diferenças e até mesmo o fim. Um amor que me transformou de maneiras que eu nunca poderia imaginar.  

Tem gente que passa uma vida inteira sem saber o que é viver algo assim. Eu vivi. E fui presenteada por isso. Porque o amor, mesmo quando termina em morte, não termina. Ele vira outra coisa. Vira energia. Vira coragem. Vira bússola. 

Após a partida do Rodrigo, descobri uma vitalidade que desconhecia. Uma força que brotou de dentro de mim, como se o amor dele estivesse me sussurrando que a vida precisava seguir. Realizei coisas que nem sei como consegui. Fui mais forte do que jamais pensei ser.  

domingo, 16 de março de 2025

Amor que se Faz Presente


 Christiane Angelotti 


* Eros e Psiquê, de Antonio Canova

Aqui estou eu novamente, falando sobre o amor. Talvez eu goste de me desafiar a abordar esse tema que me é tão caro, tentando esgotar as possibilidades de descrevê-lo sem cair nos clichês. Nesse processo, reflito e aprendo. Convido você a refletir comigo também. 

O amor. Palavra frequentemente dita, desejada, sonhada, mas que, muitas vezes, parece flutuar como um perfume efêmero. O que, afinal, é o amor? É um sentimento que se expressa em gestos, em olhares, em palavras sussurradas ao pé do ouvido? Ou, talvez, uma presença que se faz sentir mesmo na ausência? 

segunda-feira, 3 de março de 2025

O que estamos deixando para trás?

 

Christiane Angelotti

 

  Quando eu era adolescente, conheci um garoto na escola que se tornou um dos meus melhores amigos. Tudo começou com uma paquera inocente. Ele era de outra sala e me seguia discretamente pelos corredores, buscando uma oportunidade de puxar conversa. Até que um dia, perguntou onde eu morava. Respondi apenas o nome da rua e, sem hesitar, ele disse que estaria lá naquela noite, em um determinado horário. Ainda hoje não sei como conseguiu, mas ele cumpriu a promessa. E assim, todas as noites, ele aparecia na minha casa, e ficávamos conversando na calçada, numa época em que isso era comum, um hábito simples e bonito.

sábado, 22 de fevereiro de 2025

Um Dia Perfeito

  

Christiane Angelotti

 

Todos os dias pego o transporte público para ir ao trabalho. Gosto de observar o trajeto, as pessoas, as histórias que passam à minha frente.

Os dias parecem iguais na rotina do cotidiano, mas nunca são. Infelizmente, nem todos percebem isso. Mas essa é uma das poucas vantagens de que posso me gabar: eu vejo. Talvez por sempre ter tido vontade de contar histórias, talvez por ser apenas a minha forma de existir. Observar, atravessar o óbvio, captar aquilo que não se impõe, mas sussurra.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

I'm not in love

  

Christiane Angelotti

 

Eu não estou apaixonado.

Não pode ser isso. Não comigo.

 

Amar desordena, bagunça os dias, abre portas que eu tranquei.

Minha vida está calma, minha rotina intacta—

e eu não quero nada que escape do meu controle.

 

Falo com você porque gosto.

Gosto do som da sua voz ao final do dia, do jeito que me entende sem que eu precise explicar.