Christiane Angelotti
No conto 'Funes, o memorioso'*, do
escritor argentino Jorge Luis Borges, somos apresentados a um personagem que
adquire uma condição extraordinária: ele lembra de tudo. Cada folha caída no pátio, cada tom de voz de cada pessoa, cada dobra de cada lençol que já viu.
Essa memória perfeita, no entanto, se revela não como um dom, mas como uma
prisão. Lembrar de tudo é não conseguir abstrair nada — é não poder criar.
Funes, o protagonista, é incapaz de pensar, porque pensar é também generalizar.
E generalizar exige esquecer detalhes.
Pensei nele esta semana, não por
acaso. Porque eu também fui, por um tempo, uma espécie de Funes afetiva:
lembrava de cada palavra, cada silêncio, cada microgesto. A lembrança excessiva
me trouxe medo, julgamentos — e foi fechando, pouco a pouco, as portas do meu
coração. Deixei de acreditar nas boas experiências que a vida poderia oferecer
e, como consequência, perdi pessoas especiais. E, nesse processo, também me
perdi de mim mesma. A memória virou um cativeiro, onde as emoções se repetiam
sem espaço para a cura.